Por Flavio Samelo
No meio dos anos 90, o skate bombava nas periferias de São Paulo. Não era legal ser skatista, não saia nas novelas, nem na TV, era uma parada marginal mesmo, assim como o grafite e a pixação. Hoje tudo isso é diferente, agora é “style” dizer que é skatista, grafiteiro, artista e blá blá blá.
Na zona leste de São Paulo então, a coisa era mais complicada ainda. E foi lá que NUNCA foi criado. Um dos grandes nomes do grafitti mundial veio de lá, daquela época, onde o skate e o grafitti eram praticamente a mesma coisa.
Há muito tempo queria fazer essa entrevista com ele, por saber desse passado de cultura de rua forte, que fez NUNCA ser o que é hoje. Compartilho essa conversa com vocês.
Onde você estava no meio dos anos 90?
Isso foi 10 anos depois que eu nasci, andando de skate direto, começando a pintar na rua, a pixar. Até uns 11 ou 12 anos eu desenhava bastante em casa, mas nunca tinha saído pra pintar na rua. Do meio dos anos 90 até o final foi quando eu comecei a pintar na rua mesmo.
E por que tu foi pintar na rua?
Porque meus amigos viam, os caras da minha rua já faziam isso, tinha uma cultura muito forte de você fazer isso, o grafitti, o grapixo e todo mundo comentar “pô eu vi um role seu na COHAB II” e o cara morava na Cidade Tiradentes. Então eu meio que fazia pros meus amigos verem. Como eu já curtia desenhar, foi mais fácil.
Como você acha que aquela época, aquela vivência, foi importante pro que você é hoje?
Eu até estava pensando nisso esses dias. O que fez o meu trabalho se destacar naquela época, era o tamanho das coisas que eu fazia, não era uma coisa exclusiva, mas eu foquei nisso, fazer umas coisas grandes, a gente buscava isso quando morava em Itaquera. Tipo “eu fiz um grapixo gigante na Avenida Aricanduva” dai um outro cara que pintava também ia lá e fazia maior, tipo “fiz maior que o seu, agora tu vai ter que fazer maior que o meu” nessa pegada de superar um o outro mesmo. Acho que isso ficou na minha mente pra sempre. Quando eu comecei a fazer um trabalho mais autoral isso tava sempre em mente, ser grande mesmo, chamar a atenção, pra destacar dos outros. Até porque tem muita interferência visual na rua, a meta era essa, sair, fazer um trampo meu, que pudesse ser visto.
Foi disso que veio a ideia dos murais e dos grafitti grandes?
Acho que isso foi uma peça a mais que somou no trabalho. Fazer mural é diferente de sair na rua e fazer um trampo numa parede, porque você pode dedicar mais tempo, a temática pode ser mais complexa, dá pra deixar o trabalho evoluir mais, dá pra explorar o próprio trabalho.
Desses últimos trabalhos nessas proporções, quais foram mais desafiadores?
Teve uma parede que fiz em Toronto, no Canadá, que foi numa época perto do inverno e lá faz -30ºC e eu não sou acostumado nem com -2ºC. Cheguei lá tava menos -3ºC e chovia muito. A parede que eu tinha que pintar era muito grande e na hora de usar a tinta era muito difícil por conta da tinta pegar na parede molhada. Tinha que ficar esperando parar a chuva, tinha toda uma logística para eu conseguir pintar. Outro que teve uma grande dificuldade, também em função do clima, só que ao contrário, foi o avião no Arizona, nos Estados Unidos. O calor era absurdo, 40ºC e 45ºC com umidade do ar 5%. No primeiro dia meu nariz não parava de sangrar de tão seco. Pra pegar o spray era difícil, a lata ficava muito quente.
Como é a mudança depois de ter feito um mural/trabalho como esses e depois produzir no estúdio uma tela, por exemplo?
Acho que um influência o outro de algum jeito, posso pegar uma ideia que fiz num mural e trabalhar ela melhor numa tela e vice-versa. As vezes no mural você experimenta mais, você pode levar umas cores que fez num mural pra tela também e por ai vai. Mas eu sinto que eu tenho mais liberdade nos murais.
E a temática do teu trabalho, esse questionamento do consumo, do capitalismo e as raízes brasileiras, como você lida com isso? Qual a ideia por traz de escrever um Nike só que “naique” em um boné na cabeça de um indígena?
O meu trabalho é uma forma de autoconhecimento, se eu for considerar minha raça, dentro dos padrões brasileiros, seria pardo, ou seja, não existe uma definição clara do que é, não sigo uma religião, não acredito na escola pública como uma maneira de ser educado ou de se tornar um profissional capacitado com aquele tipo de informação recebida ali. Tudo que me formou como pessoa, também trouxe dúvidas de quem eu realmente sou, morando num país como o Brasil, numa cidade como São Paulo, que na verdade não tem uma identidade cultural própria, é uma mistura de gente do país todo, do mundo todo. Cada um vivendo do seu jeito, mas se adaptando ao sistema que é mínimo pra você sobreviver na cidade e, essa é a minha busca, descobrir quem eu sou nesse contexto. Achar uma resposta pra outras pessoas que também tenham essa dúvida. Na real nem é uma dúvida, é mais se perguntar “quem sou eu?” vivo num país riquíssimo onde cada estado tem um jeito completamente diferente de se vestir, comer e se viver, dai você chega em São Paulo, ta tudo aqui. Também de você ver o ser humano como uma engrenagenzinha ali, trabalhando nessa máquina gigantesca. A gente se pega dando mais valor pra essa cultura do consumo, de ter o computador mais atual, do tênis mais caro, tudo ali da última geração da última moda, ao invés de darmos mais valor a sentimentos mais reais, mais nobres para os seres humanos, muitas vezes isso é subjugado por você estar na última moda também.
E a pintura das mutilações, das partes do corpo separadas?
Quando eu comecei era por conta de ter muita gente pintando na rua e a prefeitura querer cortar essa liberdade de se expressar, de criar pintando na rua. Você pode ter propaganda, publicidade ou qualquer outra coisa que seja paga, e mesmo sem você quiser ver, você vai ver. Agora se o cara quiser escrever o nome da namorada dele, não pode. Pra mim isso era uma punição indevida, sentia que a Prefeitura de São Paulo e as leis queriam cortar nossas mãos, nossos dedos. Essa coisa da vida na cidade ser desumana, um querer ser mais que o outro, a competição muito grande nas grandes cidades, era tudo isso, essas idéias estavam ali nas partes cortadas.
Ao mesmo tempo que você tem essas criticas você também trabalha pra ela fazendo alguns murais, a mesma coisa para as grandes companhias, como você se sente nesse meio todo?
Quando eu fiz aquele mural para a Prefeitura, na Avenida 23 de maio, que ela mesmo apagou e depois pagou de novo pra gente refazer, eu tenho minhas opiniões, religiosas, políticas e filosóficas, como qualquer outra pessoa, e eu tento colocar essas idéias da melhor forma possível para que as pessoas vejam isso e na maioria das vezes isso depende muito da empresa/pessoa que eu estou criticando ou não. Muitas vezes o fato de eu estar fazendo um trabalho para uma empresa, instituição ou pessoa que eu já critiquei, mostra o quanto eles são desconectados, o sistema todo, pois eles sabem que o artista já fez certas coisas, o que ele é, e mesmo assim chamam ele pra trabalhar. Ou é uma falta de informação muito grande sobre o trabalho do cara ou é tipo “é isso ai mesmo, as pessoas gostam e a gente vai fazer assim mesmo, beleza, tranquilo!”
E daqui pra frente o que tu espera do teu trabalho?
Tem coisa que eu tenho vontade de fazer e com o tempo eu vou associando as idéias que eu já faço no meu trabalho hoje, mas é um processo, é uma evolução constante de referencias de técnica, do porque estou fazendo aquilo, sei lá, vai saber se daqui um tempo eu não faço mais pintura, vai ser só escultura, e que não tenha nada a ver com o que eu faço hoje, fechou um ciclo, vai saber. O que eu quero é estar sempre com a cabeça aberta pra perceber o meu momento para eu fazer aquilo que eu realmente queira fazer dentro do meu trabalho, não quero me privar só porque eu faço pintura só vou fazer pinturas, se eu só faço fotografia, só vou fotografar, acho que deixar o leque de opções aberto é sempre a melhor opção.