Destroy and Create – VISTA 31

Publicado em 02/04/2022

Por Lucas Pexão

O ato de andar de skate, invariavelmente, envolve destruição. Tanto que “Skate and Destroy!” é um dos seus lemas. Por mais que os skatistas evitem falar sobre isso, andar de skate em um terreno gradualmente causa sua destruição (mas não mais que a destruição causada por carros!). Os movimentos agressivos dos melhores skatistas podem entortar o metal e quebrar o concreto. O ato de andar de skate ainda submete seu praticante a uma certa autodestruição acidental, provocada pelos tombos de manobras fracassadas. Ainda existe a destruição do skate como objeto, provocada pelo atrito das manobras com as superfícies percorridas. A parte mais visível dessa destruição está no shape, a prancha de skate que carrega em sua superfície composições gráficas e/ou ilustrações de artistas geralmente relacionados ao universo do skate. Usado, o shape ganha marcas muito particulares, riscos que registram a expressão corporal do skatista sobre a arquitetura.

Foto: Fabiano Lokinho


Também vindo dos anos 80, sobrevive o lema “Skate and Create”, aludindo ao skatista como ser criativo, flaneur contemporâneo que aprecia arquitetura com o corpo, vaga pela cidade em busca de experiências e, inspirado por essa maneira distinta de usar a arquitetura, se expressa das mais variadas formas. Além do skate como expressão corporal, a arte visual, música, fotografia, vídeo/cinema, design gráfico e literatura são campos amplamente desbravados por skatistas. Depois de anos utilizando redes alternativas e veículos independentes, a arte dos skatistas se fundiu ao mainstream. Esse ponto de vista de criadores oriundos do skate, essa raiz, atualmente é explorado em exposições e livros de arte, fotografia, design e literatura, coletâneas de música, filmes e documentários. Sim, o skate gera destruição, mas trata-se de uma consequência do ato criativo.

Foto: Alex Brandão

O skatista novato costuma comprar o primeiro shape influenciado pelas ilustrações em sua superfície e, ao longo dos anos, estabelece uma relação íntima com esses desenhos e designs, mesmo que provocando a destruição dos mesmos. O ruído visual provocado pelo desgaste dos shapes acaba constituindo uma nova ilustração que se transforma ao longo do uso e registra o ato performático do skatista em sulcos na madeira. Muitos skatistas guardam seus skates destruídos, às vezes quebrados ao meio, apreciando suas ranhuras e o que sobra das ilustrações originais. Existem inúmeras fontes e infinitas leituras, mas certamente o skate como objeto e como cultura é determinante para a popularização do design gráfico desconstruído, sujo e “destruído” que marcou os anos 90. Tanto é que David Carson, o designer mais emblemático desse período, uma década antes, teve como laboratório a revista Transworld Skateboarding, onde trabalhou como diretor de arte e teve a liberdade para experimentar.

Foto: Fabiano Lokinho

Atualmente o shape de skate, além de ser consumido para o ato de andar de skate, é colecionado como suporte para arte e design gráfico, exposto como um quadro, na parede, nas casas de seus colecionadores, em galerias e museus. Além dos gráficos produzidos industrialmente, o shape se consolidou como um suporte para desenhos, pinturas e colagens originais de artistas. Exposições de shapes pintados já se tornaram um clichê a nível global, mas até agora nenhum projeto deu continuidade ao ciclo natural de uma arte de shape: o processo destrutivo da prática do skate. A idéia de completar esse ciclo, com shapes carregando arte original, está na minha cabeça há pelo menos cinco anos, mas agora ela se alinhou com o momento atual do skate brasileiro e se concretizou de fato.

Foto: Alex Brandão


Em Destroy and Create shapes de skate foram usados como suporte para a produção de obras de arte por artistas com raízes ou conexões com esse universo. Em um segundo momento, os shapes foram montados como skates (ganhando eixos, rodas e rolamentos) e usados por um grupo de skatistas, que andaram de skate e fizeram manobras na cidade. Os shapes/obras foram semi destruídos ou, dependendo do ponto de vista, recriados durante o processo, em uma colaboração entre cada artista-skatista e skatista-artista.

Os artistas convidados para criar obras de arte usando shapes tem uma relação especial com o skate e sua cultura. Não por acaso, todos entenderam o projeto rapidamente e se dedicaram a criar um trabalho inédito para ser destruído por manobras. Silvana Mello, a gaúcha que se mudou para São Paulo para andar de skate e hoje é uma das principais artistas urbanas brasileiras, manteve sua sensibilidade particular na pintura e nas miniaturas e componentes eletrônicos que colou no shape. Fabio Amad “Bitão” escavou e cortou seu shape para criar formas e compor com padrões feitos com stencil, ainda assim mantendo a estrutura da prancha que incrivelmente não quebrou durante as manobras. O músico e artista Carlos Dias pintou a madeira na frente e no verso, mostrando duas faces de seu estilo, e portanto foi a única que recebeu uma lixa transparente. Luis Flavio “Trampo” e Alexandre Cruz “Sesper”, lendas da arte relacionada ao skate em Porto Alegre e São Paulo, respectivamente, previram o desgaste e trabalharam em diferentes camadas, que foram se revelando ao longo da session. Marcelo Barneiro transpôs o trabalho que desenvolve em telas para o shape com tintas que resistiram bem ao atrito, resultando em uma interferência sutil que deu movimento aos pássaros pintados. Já Mateus Grimm optou por preencher o shape com um desenho frágil mas intrincado, onde quase a totalidade da arte ficou esfarelada pela cidade, mas as partes que restaram se destacam pela riqueza nos detalhes. Bruno 9li não só levou em conta a destruição como incentivou ela, mandando seu shape-nave com foguetes acoplados que deixaram um rastro de fogo na madeira. Walter Nomura “Tinho” e MZK criaram gráficos muito diferentes, mas tão bem aplicados e resolvidos que poderiam ser sucessos nas prateleiras de skateshops. O mesmo vale para o deck original de Billy Argel, um artista que de fato criou parte significativa da melhor arte do skate nacional encontrada nas skateshops dos anos 80.

Alexandre Cotinz / Foto: Fabiano Lokinho

As sessions com os shapes transformados em obras de arte aconteceram em uma noite e três dias de junho, na Av. Paulista. Sobre os skates, a equipe adidas Skateboarding Brasil: Klaus Bohms, um dos principais nomes do skate progressivo e criativo do Brasil e rapidamente conquistando reconhecimento internacional. Akira Shiroma, o talento radioativo de Cubatão que anda em qualquer terreno, contorcendo manobras fora do padrão e pegando pesado nas escadas e gaps. Daniel Marques com toda sua classe, fazendo as manobras mais difíceis parecerem fáceis. E ainda Fabio Schumacher, com toda base de quem passou as últimas décadas sobre o skate e definitivamente sabe se divertir, habilidade que seu pequeno filho Bento, que andou junto em uma das sessions, parece ter herdado do pai. Vale considerar que os skatistas também ficaram livres da pressão de se matar em manobras impossíveis e estressantes, então o rolê conseguiu manter um clima leve, de amigos se divertindo na cidade. Claro, saíram várias manobras inacreditáveis, porque, pra esses caras, isso é normal.

Na cola dos skatistas, além da equipe de produção, incluindo iluminadores e até um segurança, estavam alguns dos fotógrafos e videomakers mais visionários do skate brasileiro. Nesse projeto, todos entraves da fotografia e vídeo comerciais de skate foram para o espaço. Eles não precisaram focar em mostrar o skate de maneira clara e sempre valorizando a manobra, como geralmente fazem nas revistas e propagandas de skate. Alexandre Cotinz, por exemplo, prendeu uma fisheye com silver tape em uma filmadora surrada e buscou uma estética dos vídeos de skate dos anos 90, seguindo skatistas de perto, até de noite, com uma luz auxiliar presa na câmera. Gabriel Sândalo foi na direção oposta, filmando cuidadosamente em full HD com a notória Cannon 7D, dando atenção especial para tudo que aconteceu entre uma manobra e outra. Nas fotos, Alex Brandão conseguiu capturar os desenhos dos shapes sendo destruídos, botando a câmera literalmente dentro das manobras, sofrendo as consequências (sua fisheye perdeu um pedaço), mas também colhendo os frutos desse risco com imagens insanas. Fabiano Lokinho usou muito filme em suas fotos, principalmente preto e branco, e capturou momentos especialmente estranhos e/ou bonitos. Flavio Samelo, pioneiro no Brasil quando o assunto é fotografia de skate no limite da arte, clicou as sessions com atenção especial para os detalhes, tanto da cidade quanto da personalidade dos skatistas. E isso são apenas alguns exemplos, pois cada fotógrafo e videomaker tiveram a oportunidade de explorar várias técnicas e temáticas.


Lucas Pexão / Foto: Fabiano Lokinho


Durante o primeiro dia, na verdade uma noite que seguiu madrugada adentro, Billy Argel apareceu na sua moto hell-angel-style pra conferir a session. Outro artista (e fotógrafo) que criou uma arte original de um shape e apareceu, na real andou junto com a galera quase todo tempo, foi Fabio Amad “Bitão”. Ele prendeu uma micro filmadora na ponta do seu skate e filmou tudo “rolling” ou segurando o skate-câmera como um rifle, deixando toda session ainda mais incomum. E todos estavam à vontade, se expressando com seus skates e câmeras, acompanhando empolgados a transformação das artes pintadas nos shapes enquanto redescobriam a arquitetura da famosa avenida. Um ato coletivo de criação, sem competição. O contraste desse skate artístico, em relação a idéia de skate como esporte, ficou ainda maior por uma das sessions ter acontecido durante um dos jogos do Brasil na Copa. Com a população espremida em bares ou apartamentos, com suas bandeiras e vuvuzelas em frente a televisão, a Paulista ficou deserta. Alheios a histeria coletiva, esse grupo de skatistas aproveitou para andar em locais normalmente inacessíveis, incluindo o incrível teto de concreto, em formato de bowl, de um certo hospital. Enquanto todos torciam para derrotar um time adversário, os skatistas compartilhavam idéias e visões da arquitetura, comemorando juntos cada manobra.

As fotos aqui impressas são resultado direto desse experimento artístico, com a arte desses artistas com raízes no skate, a performance desses skatistas que percebem a cidade como uma tela em branco e a fotografia que vai muito além do simples registro. E isso é apenas uma amostra da experiência completa, que está em uma exposição de arte na Matilha Cultural, em São Paulo, onde, além das imagens, incluindo os vídeos, estão os shapes/obras de arte destruídos. A exposição ainda conta com uma escultura skatável do coletivo Noh que vai levar todo projeto para rua mais uma vez. Desdobramentos que você pode acompanhar pela internet e, mais que isso, explorar você mesmo. É só uma questão de cada skatista dar valor ao que já faz normalmente, quando usa a destruição para criar.

 

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