Entre cura e liberdade: uma conversa com Jonathan Ferr

Publicado em 05/05/2022

Por Thuanny Judes e Filipe Maia

Já ouviu falar de urban jazz? E de Jonathan Ferr? Bom, se a sua resposta para essas perguntas foi “não”, abra qualquer streaming de música e corrija agora esse erro antes de continuar a leitura. Se a resposta foi “sim”, então, siga tranquilamente.

 

Amor, revolução e cura se misturam na arte de Jonathan Ferr que, aos 35 anos, já tem dois álbuns lançados e está em ascensão na música brasileira com seu urban jazz, termo que ele mesmo usa para descrever seu som. Em meio a seus próprios processos, o músico abraçou a missão de tornar o jazz brasileiro mais democrático e de se conectar com um público cada vez mais amplo.

Inclusive, falar de conexão é falar de Jonathan. De fala rápida, pensamento fluido e expressão carismática, ele mostra como a música pode ser amor, cura e beleza, esta que não falta em seus shows: está presente na música, nas palavras e em seu próprio corpo que preenche o espaço e comanda o piano, revolucionando tudo à sua volta.

Entre seu jantar de aniversário e seu show em Porto Alegre, conseguimos bater um papo com o pianista, “garoto estandarte” do jazz carioca. Ele não esconde que sua vida poderia ser composta de muitas trilogias e etapas, todas sempre interligadas por reflexões. “Muita maluquice eu querer tocar piano!”, foi uma delas. Maluquice seria se ele não tocasse.

Jonathan Ferr / Foto: Pyetra Salles


Você tem gosto pelas trilogias. Me fala um pouco mais sobre isso e como isso impacta no seu trabalho.

Desde criança eu sempre gostei. Um dos primeiros livros que eu li foi O Hobbit, que traz essa saga. Depois li O Senhor dos Anéis. Na verdade, O Hobbit eles dividiram pro filme, porque o livro é um só. Mas O Hobbit me levou pra O Senhor dos Anéis, que é trilogia e tal. Depois disso eu comecei a ter essa brincadeira, Star Wars que também são trilogias: uma trilogia, depois a outra, e agora a última que rolou agora e tal.

Eu sempre achei legal, e aí quando rolou a oportunidade de fazer meu primeiro disco, queria fazer e não entendia como ia ser feito e tal. No primeiro momento, pensei em fazer três discos mesmo, mas assim, foram um ou dois anos e meio fazendo. Por vários motivos: pelo entendimento pessoal enquanto artista, espiritualmente falando também. Na época comecei a tomar ayahuasca, me converti ao budismo; vários processos que atravessaram a minha vida que naturalmente reverberam na vida artística. Isso levou dois anos e meio. Então, no final do processo, eu entendi que pensar em dois discos, três discos, ia ser too much talvez porque era me comprometer com um futuro que eu não sabia, né? Hoje eu tenho isso muito claro. Só me comprometo com o presente. O futuro eu planejo, mas eu fico bem fluido no que pode ou não acontecer.

TODO MUNDO QUER SER AMADO, TODO MUNDO TÁ EM BUSCA DO AMOR. […] TODO MUNDO BUSCA SEU LUGAR NO AMOR.

E aí, dentro disso, um dia eu tive uma revelação muito linda num ritual sobre os processos do amor, sobre pensar o amor. Não o amor romântico, mas o amor enquanto energia, uma energia cósmica que gera tudo, que nutre todo mundo. Todo mundo quer ser amado, todo mundo tá em busca do amor. A gente quer ser acolhido nos espaços, nutrição de afeto nas nossas amizades, nossa família, nosso trabalho. Todo mundo busca seu lugar do amor. Então, o amor tá presente em todas as áreas. Vocês tão fazendo isso aqui com muito amor, tô vendo. E aí comecei a pensar no amor nesse sentido de uma energia que nutre a gente e transforma nossa caminhada.

Trilogia do Amor, que é meu primeiro álbum, traz isso. No Spotify, ele não tá tão claro. Falei em várias entrevistas, às vezes as pessoas ficam na dúvida se são três álbuns. Teve gente que perguntou: pô, mas quando sai o terceiro da trilogia? Não, cara. A trilogia tá em si mesma, que é A Jornada, O Renascimento e a Revolução.

A Jornada é quando a gente percebe que a gente tá jornando nessa vida mesmo, né? A gente tá num espaço tempo, caminhando pra algum lugar. Muita gente tá vagando sem saber muito o que tá acontecendo, sem saber nem que tá vivo. Então, esse despertar, essa consciência de falar: “Estou aqui, estou vivo, estou indo pra algum lugar. Não sei pra onde, mas estou observando esse caminho”. É quando eu percebo que é a jornada.

E no meio desse processo, acontece o Renascimento, quando você se descobre mesmo, se autoconhece. Acho até que espiritualidade tá muito ligada não à religiosidade, não à religião, mas a se conhecer, quando se conecta profundamente consigo mesmo, você se conecta com o todo. Você é o todo, nós somos o todo. Somos seres do universo, cósmicos e tal. E a partir desse Renascimento, tudo revoluciona. Você revoluciona tudo à sua volta.

Eu sempre uso um exemplo muito prático, todo mundo conhece, que é do Martin Luther King, que era um cara que, dentro do processo dele ali nos Estados Unidos, anos 50, segregação, um monte de coisa, ele era um pastor. Vivia com o pessoal da igreja dele, da família. De repente ele percebe que a coisa é muito maior do que ele. Ele entende a jornada dele. Isso faz ele renascer pra uma nova possibilidade, um novo entendimento, e a partir disso ele revoluciona tudo. Então, esses são os três passos desse amor energético, e aí vem a trilogia. Já inicio com a trilogia, que é a Trilogia do Amor.

E como você descreveria seu som?
Nossa, essa é difícil. Eu falo que é urban jazz, mas hoje eu até tenho pensado muito sobre essa alcunha do jazz que eu tô. Porque eu tô caminhando pra uma coisa que rompe um pouco as fronteiras do que é o jazz, eu acho. Eu tenho buscado isso, né, porque a minha trajetória musical foi moldada por várias coisas.

Na adolescência inteira eu tive banda de rock. Quem olha pra mim nem imagina. Banda de death metal, thrash metal, banda cover do Nirvana, banda cover do Slipknot. Eu adorava, adorava! Agora eu não ouço com tanta frequência. E logo depois, no finalzinho da adolescência, com 17 ou 18 anos, eu começo a ter interesse por outras coisas. Eu estudava muito piano, muitas coisas que me levavam a ter que ouvir outras referências pra poder estudar e tal. E aí veio o jazz! E junto com o jazz, veio o hip hop também: Racionais MCsMV Bill. Artistas internacionais também: 50 Cent, Jay-Z, começam a trazer uma outra referência de estética musical que, até então, eu não conhecia.

E o jazz, obviamente, que mudou minha vida, minha escuta. O primeiro cara que eu ouvi foi John Coltrane. Eu me lembro até hoje, até falei isso recentemente num podcast, que me lembro de ter chegado numa aula chamada Apreciação Musical. Era uma aula de uma escola de música que, além das aulas práticas, tinha outras matérias complementares. Essa era só de escuta mesmo. Ele [professor] chegava e falava: “Hoje vou mostrar pra vocês Janis Joplin”. Aí ele falava um pouco da história dela, qual a importância dela pra música mundial, depois tocava um disco pra gente ouvir. Era um vinilzão, bolachão. Quando não, era CD mesmo.

Aí numa dessas eu cheguei e ele já tinha discursado sobre John Coltrane. Cheguei atrasado na aula, na hora que ele foi dar o play, na primeira música. E foi um negócio… foi A Love Supreme. Foi um disco que mudou muita coisa. Me influenciou muito. E aí eu chapei, chapei! Fiquei super impressionado com a sonoridade, nunca tinha ouvido aquele tipo de som. Tava acostumado com aquela ideia de canção com refrão e não sei o que, e de repente uma música disruptiva. Lembro que de cara eu não entendi, mas fui tocado profundamente. Eu voltei no álbum. E depois veio todo mundo, outros artistas: Miles Davis, Herbie Hancock, McCoy Tyner. Vieram os brasileiros também na sequência: Hermeto Pascoal, Arthur Maia, Banda Black Rio, Azymuth, outras bandas brasileiras que viraram referência, mas tudo a partir do John Coltrane.

EU TINHA UMA NECESSIDADE DE MOSTRAR QUE [O JAZZ] ERA UMA MÚSICA TÃO REVOLUCIONÁRIA E TÃO FUTURISTA QUANTO QUALQUER OUTRA COISA.

Aí, depois disso, quando eu me percebi artista, eu tocava pra uma galera, mas eu queria ser o Jonathan Ferr no palco. Não queria ser só o músico acompanhante, o que é super legal também, mas eu queria botar minhas ideias pra fora, mostrar minhas ideias, me conectar. E aí quando começo a criar, pensar, eu começo a perceber que todas as músicas que eu tinha tocado tavam grudadas em mim. Meu jazz não saía igual ao dos meus amigos, por exemplo, que era um som mais tradicional, acho. Queria uma coisa que fosse mais a ver comigo, mais jovem.

Também tinha uma coisa muito interessante que eu era do jazz, mas andava com a galera do rap, com beatmakers, pessoal da música eletrônica. Era com essa galera que eu caminhava, ia pros shows de música eletrônica, raves. E ouvindo jazz. Tacando jazz em casa! E aí quando eu falava de jazz, meus amigos iam lá pra casa, eu mostrava, a galera gostava de uma coisa ou outra, mas achava careta. E eu tinha uma necessidade de mostrar pra eles que era uma música tão revolucionária e tão futurista quanto qualquer outra coisa, eletrônica e tal.

E uma forma que veio, natural, não foi nem pensada, hoje estruturo isso mais claramente, mas quando eu comecei a fazer isso não tava muito claro, aí eu misturei tudo: jazz, eletrônico, R&B, hip hop, tudo que vinha na minha cabeça. Eu chamei de urban jazz, que não é um nome meu. É um termo que eu achei, me apropriei, porque eu achava que era uma música muito urbana, que falava muito com a galera que tava na rua, com meus amigos que tavam na rua, no rolê, na balada. Era uma música que eu pensava: rua!

Jonathan Ferr / Foto: Pyetra Salles

Eu tinha até duas imagens muito interessantes. Uma era: eu queria que meu disco fosse pra galera ouvir indo pro trabalho, pegar o metrô, o ônibus, no trem. E até é um disco que é bem curto, tem, sei lá, 29 minutos. Pro cara ouvir o disco inteiro e conseguir se conectar naquele processo ali. Uma coisa que seja rápida, no momento que se tem o Spotify, que você dá um clique e pode cortar, sair… então, tinha que ser uma coisa que fosse instantânea, rápida, urbana. E acho que o urbano pra mim é isso: é movimento toda hora, passou, já foi, o que é moda hoje já passou pro outro e tal. Tinha essa imagem!

E pra além disso eu tinha essa outra imagem que é de uma coisa que eu experimentei em São Paulo, que é a balada de jazz: galera tomando cerveja, fumando um, ouvindo o som amarradão, e o jazz comendo solto. Isso me impressionou muito, e eu falei: pô, esse tipo de som que eu quero fazer, nesse formato. Até a música nem era tão parecida, mas eu queria uma coisa que pudesse caber dentro desse espaço. E foi assim que nasceu o urban jazz e agora esse urban jazz tá se alargando pra outras possibilidades. O próximo disco que eu vou fazer é uma doideira que tô pensando também… é isso.

Vamos falar de jazz brasileiro. Quais são suas influências por aqui?
Hermeto Pascoal, com certeza. Eu gosto muito de uma banda que não se denomina jazz, mas que é uma banda instrumental que me influencia muito, que é a Banda Black Rio. Eles se denominam uma banda de funk samba, funk soul. A primeira banda a misturar o samba com o funk do James Brown dos anos 70. Tem um disco muito incrível chamado Maria Fumaça. Esse disco é a minha escola de swing. É muito, muito incrível!

Oberdan Magalhães, que já é falecido, e ele também foi o cara que criou durante muito tempo os arranjos do Gil, Caetano, vários discos dessa época desses caras, era ele que canetava. Então, era o cara que dava o background dessa galera e montou essa banda. E até tem uma coisa interessante dessa banda que eu descobri depois.

Me convidaram pra fazer a trilha sonora de um longa metragem, Trem do Soul. Aí tem um livro que eu li pra poder me inspirar e conversei com um cara que eu nem sabia que tinha feito parte desse movimento, um senhor, lá com seus 70 anos. O cara é uma biblioteca musical, informação, história, movimentos culturais do Rio de Janeiro. Dom Filó o nome dele. E aí ele me fala que a Banda Black Rio, que eu tanto ouvia, foi pensada a partir de um cara chamado André Midani.

No anos 70 começou a rolar no Rio de Janeiro o Movimento Black Rio, que era a galera do subúrbio, maioria negra, ouvindo James Brown. Então, os bailes rolavam soltos, a ponto de em um baile de domingo os caras reunirem, sei lá, 15 mil pessoas. Uma coisa assim, absurda! Aí o André Midani é convidado pra ir, na época ele era presidente de uma grande gravadora [Phonogram/Philips, de 1967 a 1975]. Ele vai até o lugar, vê aquela galera dançando no mesmo compasso, ele ouve aquele som e fica alucinado. E aí Filó apresenta uma banda pra ele, e fala: vamos montar uma banda pra poder tocar nos bailes. Aí montam a Banda Black Rio, sai o primeiro e o segundo disco.

Depois, rola uma coisa muito doida. Ele [André Midani] é francês radicado no Brasil, e recebe uma ameaça na época da ditadura militar, falando pra ele parar porque achavam que eles tavam recebendo dinheiro dos Black Panther pra financiar um movimento do povo negro contra o governo. Aí a banda só vai gravar disco de novo em 2000. Tem um hiato de 30 anos aí, sem lançar disco nem nada. Muito doido, né? É o filho dele que retoma, inclusive.

Enfim, é uma banda que me influencia bastante. Uma das bandas brasileiras que mais me toca. Azymuth, que é uma banda que me toca bastante também, Arthur Maia. Tocam fundo no coração.

E fora do jazz, quem mais te inspira na música?
Racionais MCs, Mano Brown, MV Bill também gosto muito. São referências muito fortes. Coisas que eu amo, que falam muito pra mim.

Você entende seu som também como uma forma de criar novas narrativas para a história da música negra brasileira?
Sim. Com certeza. No começo, eu não acreditava não. Não achava que era isso não. Só queria tocar, fazer meu som. Vender minha arte na praia [risos]. Queria só fazer meu som, aí depois eu comecei a perceber que… engraçado isso. Eu dei essa referência de São Paulo e, muito embora esse show que eu assisti nesse ambiente, nessa balada de jazz, fosse um som que não era parecido com o que eu queria fazer, eu acreditava que tinha outras bandas e outros artistas fazendo a mesma coisa que eu. E aí eu comecei a tocar no Rio, São Paulo, e era muito chocante as pessoas vindo me falar que não tinha esse som em lugar nenhum.

TÊM APARECIDO BANDAS QUE ME DIZEM QUE SOU REFERÊNCIA. FICO ATÉ LISONJEADO PORQUE NÃO ESPERAVA ISSO. E É MUITO LEGAL VER QUE A GALERA TÁ CURTINDO UM JAZZ PORQUE CONHECEU MEU TRABALHO.

Comecei a buscar meus pares. Pesquisei, fucei muito. Pensei: bom, então tá mudando alguma coisa aqui. Têm aparecido bandas que me dizem que sou referência. Fico até lisonjeado porque não esperava isso. E é muito legal ver que a galera tá curtindo um jazz porque conheceu meu trabalho, e eu só queria que meus amigos gostassem lá no início. De repente, isso se expande, não só pra juventude.

Eu tive uma experiência muito linda, que faz a trajetória valer muito a pena. Nós fizemos um show lá no Rio, Tributo ao Coltrane, inclusive. Aba reta, tal, óculos escuro: Coltrane diferenciado. Bem moderno. Queria fazer Coltrane 2019, que foi quando rolou o show. Um projeto bem legal, que a Tânia [Tânia Artur] que organizou, era jazz a 1 real, era pra ser bem acessível, nesse lance de democratizar esse tipo de música que normalmente tá sempre em espaços muito elitizados. É dar acesso pras pessoas alcançarem e saber como funciona. Fizemos o show, e uma senhora que devia ter uns 70 anos (pelo rosto dela, era uma senhora que… muita coisa aconteceu na vida dela, marcas da vida mesmo), ela veio com um sorriso lindo e me deu um abraço apertado assim, abraço de vó, gostosão. E ela falou: “nossa, tô muito emocionada com seu show. Que incrível! Nunca tinha vindo num show de jazz. Não sabia que jazz era tão bom. A partir de hoje, toda vez que me chamarem pra um show de jazz, eu vou”.

Jonathan Ferr / Foto: Pyetra Salles

Olha isso! Isso foi meu Grammy! Fiquei super emocionado porque eu não faço música pra entreter. Faço música pra conectar. Eu até falo no show: “gente, não tô aqui pra entreter, tô aqui pra conectar”. Aí você traz a memória e realiza quem tá ouvindo: “o motivo aqui é outro”. Eu acho que a conexão tem que acontecer. Nem é a conexão comigo, mas consigo mesmo. Ouvir e entrar mesmo, se conectar. Tenho uma amiga que fala que a única saída é pra dentro. Eu acredito muito nisso.

PERCEBO QUE TÁ CHEGANDO PRA MAIS PESSOAS. POR ISSO EU ACHO QUE, DE ALGUMA MANEIRA, EXISTE A POSSIBILIDADE DE MUDANÇA, DE SER REFERÊNCIA PRA QUEM TÁ CHEGANDO, GENTE QUE NÃO TINHA REFERÊNCIA DE UM PIANISTA PRETO. NOS ESTADOS UNIDOS ISSO JÁ EXISTE HÁ MILHÕES DE ANOS. MAS PIANO É UM INSTRUMENTO CARO, ELITISTA. MUITA MALUQUICE EU QUERER TOCAR PIANO, INCLUSIVE.

E foi lindo ouvir ela falar isso, e eu percebi que pra além dessa galera mais jovem que segue, começou a se expandir pra outras pessoas também. Teve shows que tinha muitas senhoras, todas arrumadíssimas, com chapeuzinhos, parecia aquelas novelas dos anos 50, lindíssimas assistindo. Até falei pra minha banda: “caraca, vamos segurar um pouco a onda”. Mas na primeira música, a gente já esqueceu tudo. Eu pensava: “essas senhoras vão sair daí descabeladas!”. E elas ficaram amarradonas, elogiando, falando, pedindo pra tirar foto, chamando de “neto”. Eu falei: “pô, nossa, não vamo desnetar depois não, hein” [risos]. Foi lindo! Foi bonito!

Percebo que tá chegando pra mais pessoas. Por isso eu acho que, de alguma maneira, existe a possibilidade de mudança, de ser uma referência pra quem tá chegando, gente que não tinha referência de um pianista preto. Nos Estados Unidos isso já existe há milhões de anos. Mas o piano é um instrumento caro, elitista. Muita maluquice eu querer tocar piano, inclusive. Uns dois três meses atrás, uma mãe mandou uma foto do filho tocando piano. Falou que ele tá super interessado e referenciado em mim. Achei isso super incrível.

Tem uma entrevista em que você diz que atingir mais pessoas é mais sua cara do que ser um artista virtuoso que nem todo mundo consegue ouvir. Como é isso pra você na hora de compor? Você dá uma segurada nesse lado virtuoso ou já é natural?
Eu sempre fui rebelde, embora eu estude muito pra trabalhar. Tenho um professor que fala que somos atletas do piano! É o braço, a coluna, todo um processo pra você tirar o melhor som possível do instrumento. Sempre busquei isso, mas em algum momento percebi que (olha a conexão de novo) o que me conectava primeiro eram outras possibilidades, embora eu vá em um show de jazz e veja os caras tocando pra caraca, sou o primeiro a gritar!

HOJE NÃO ESTOU INTERESSADO EM TOCAR 39 NOTAS POR SEGUNDO, TÔ INTERESSADO EM TOCAR A NOTA CERTA.


Jonathan Ferr / Foto: Pyetra Salles

Mas quando vou propor meu som, fico pensando nessas senhoras, por exemplo, se eu fizesse um monte de nota solta… Claro que tem momentos de catarse que acontece isso, inevitavelmente, não tem como, mas se for só isso, sabe? Vejo vários colegas que fazem isso e parece um show de TCC, um show pra mostrar que toca muito.

Eu hoje não tô interessado em tocar 39 notas por segundo, tô interessado em tocar a nota certa. O Miles Davis fazia isso e é um cara que me inspira muito. Ele tocava aquela nota certa e era de chorar, porque é profundo! É sobre profundidade, eu tenho buscado cada vez mais o simples – não simplório -, a síntese do que preciso dizer, embora eu seja muito falante, quando vou tocar eu penso naquilo que me toca e normalmente é ficar repetindo o tema, mudando a variação, mas repetindo pra virar, quase um mantra!

Fico buscando uma compreensão do ouvinte e, nesse processo, eu sinto que quanto mais simples, mais eu consigo chegar a mais pessoas. Esse pensamento vem de forma natural, orgânica, normalmente as composições aparecem. Dentro desse processo, elas chegam de forma muito simples.

Estudei com um professor muito virtuoso, e a gente ia bastante pra esse lugar na música. Aí eu criava umas músicas que achava simples e tentava mudar, colocar mais notas, e quando ia apresentar pra alguém, a música não chegava pra elas, sabe? Quando eu tocava uma coisa mais simples, a pessoa se sentia tocada! Eu amadureci nesse processo sobre tocar mais, as músicas que me tocam, sabe? Tem que me tocar pra tocar o outro, senão não tem verdade. As coisas que me tocam tendem a tocar o outro porque elas têm quase uma ingenuidade, uma forma despretensiosa de conversar com as pessoas, ajudando a transportar essas pessoas pra uma coisa mais lúdica, pra algo que tá dentro delas. [A música] É baseada nas suas experiências!

Outro professor comentou algo e eu sempre lembro disso: quando você tá tocando, tudo o que você viveu, comeu, lugares que você visitou, pessoas que amou, beijos que deu, abraços, lugares, saudades… Tudo está naquela nota ali! É você inteiro se projetando naquele instrumento. Isso chega pra pessoa que está ouvindo também. Essa conexão vai se abraçar energeticamente e fluir pra outro lugar. Dentro disso, a simplicidade no processo ajuda a deixar a coisa mais fluida mesmo.

E dentro desse processo, como o afrofuturismo se conecta com sua música?
O afrofuturismo veio pra mim no Trilogia do Amor. Um amigo comentou sobre isso e me chamou muita atenção, e em um fim de semana eu li e vi tudo sobre afrofuturismo! Lembro que uma galera falou que minha música tinha a ver com isso, já que é uma forma de pensar arte, uma filosofia de vida, se pensarmos sobre um ponto de vista. O primeiro ponto de vista é ser uma pessoa preta e como ela enxerga o mundo e o futuro a partir dessa perspectiva. A partir disso a gente tem várias coisas, ciências da filosofia, ficção científica, a própria parada social que vai se espalhando no assunto e pensar no que é o futuro. O futuro é agora, tudo o que faço agora vai reverberar na frente, bem como o que foi feito lá atrás e tá reverberando agora.

Tenho umas fantasias sobre o futuro em termos de tempo e espaço. Hoje é 27 de abril de 2022, mas estamos também em 27 de abril de 1822, porque pra mim o tempo é um grande quebra-cabeças, se você vê como um todo. A gente não vê porque estamos no meio da parada, mas penso em outras possibilidades de enxergar o tempo, não só cronologicamente. A gente consegue perceber que está tudo acontecendo junto. Se eu dou um peteleco aqui nesse tempo, vai mudar tudo! Tudo mexe no futuro e no passado.


Jonathan Ferr / Foto: Pyetra Salles

Lembro que dei uma entrevista pra TV Bahia, no começo do ano, e nessa entrevista fui tocar num lugar que era um pub, com um piano. Esse restaurante era dentro de uma senzala, em Salvador. O cara contou a história do lugar, como eles mantiveram e tudo mais, e o interessante foi que toquei e a sensação que eu tinha era de que alguma maneira eu estava curando quem estava naquele exato momento lá atrás. Era uma sensação doida de que estava modificando o passado naquele exato momento, de alguma maneira estávamos no mesmo espaço tempo.

Tive uma experiência uma vez em um ritual de conversar com a minha criança interior, de falar das dores que curei. Já escrevi também no futuro, perguntando como estão as coisas. É uma forma de pensar no futuro, entender o futuro, e a partir da minha perspectiva afro acaba tendo outros olhares. Pra minha música e minha imagem, trago muito isso!

Seu primeiro disco, Trilogia Do Amor, se divide em três capítulos: A Jornada, O Renascimento e A Revolução. Já seu segundo disco, Cura, lançado em 2021, é mais minimalista, mesmo que ainda complexo. Hoje, em que momento está o Jonathan: entrelaçado entre tantos capítulos e etapas, ou mais leve e simples?
Estou agora vibrando no tema do próximo álbum, que vai se chamar Liberdade, tô gravando no momento. A minha ideia de vida, como artista, é que os álbuns se conversem de alguma forma. Não sei até quando vou fazer álbum, mas penso nisso por enquanto. O Trilogia me levou para o Cura, que aparece em 2021, mesmo sendo concebido em 2020.

Na pandemia, maior loucura, né? Os shows sumiram e de repente: e agora? Fiz uma campanha social junto da minha empresária, Tânia Artur, chamada Bora Espalhar Amor. Fizemos pra ajudar uma galera da comunidade onde eu nasci e rapidamente levantamos uma grana e ajudamos algumas famílias. Depois disso, minha energia mudou. Perdi o medo, mas comecei a sentir falta de várias coisas, como o fim de semana com os amigos, as baladas… Dentro desse processo, começaram a sair as músicas. Tava triste? Saía uma música. Tava feliz? Saía algo novo. É um processo que chamo de “curamento”, porque a cura não é instantânea, ela é um processo. A preocupação desse disco é pensar em uma ferida, a gente pensa que se curou ou que se feriu?

O QUE VEM DEPOIS DA CURA, NÉ? TODA VEZ QUE ME CUREI DE ALGO, ME SENTI LIVRE. O PROCESSO PÓS CURA É A LIBERDADE, COMO ELA ME ATRAVESSA, O QUE ELA É PRA MIM, A EMANCIPAÇÃO DAS MINHAS IDEIAS.

Jonathan Ferr / Foto: Pyetra Salles

Uma vez o Lázaro Ramos mandou uma mensagem muito legal de um filme que eu tinha feito. Uma frase que me marcou foi “a beleza vai salvar o mundo”. Achei muito simples, mas muito profundo. O que é a beleza senão aquilo que vemos, né? Já vi gente falando, por exemplo, de quem fica impressionado com o sol, falando que é só uma bola… É a perspectiva dele, né? Eu não penso assim. O outono é minha estação predileta, me toca profundamente porque fico procurando a beleza em tudo mesmo. Tem aquela música do Racionais que fala “até do lixão nasce flor”, porque é isso, a beleza não para, ela está sempre se manifestando!

Fui buscar isso e esse álbum é muito particular… Na verdade mesmo não pretendia lançar essas músicas, elas eram pra minha cura, quase não mostrei pra ninguém. De repente, a gravadora entrou em contato, queria assinar com a gente e perguntou se tinha algum trabalho novo, e pensei nessas músicas, mesmo elas sendo só de piano. Disco de piano eu pensava mais pra frente, pra daqui 10 anos, comemorando anos de carreira, gravação de DVD, essas coisas, as projeções, sabe? Tem que abrir mão às vezes de pensar no futuro porque as coisas acontecem agora.

Fiquei um pouco inseguro de algumas formas, por ser meu segundo álbum, pelas músicas serem pessoais, quase um diário que estaria abrindo pra todo mundo. Aí rolou, com outras coisas que rolaram no background e foram importantes pra fazer isso. O nome “CURA” saiu também em um ritual que participei na Ayahuasca e foi muito interessante… E aí saiu o disco!

Recebi mensagens de pessoas dizendo que o álbum também as acompanhou no processo da pandemia, ou no de cura, é muito doido, né? Eu nem fazia ideia pra quem iria chegar, você lança no mundo e ele vai.

O que vem depois da cura, né? Toda vez que me curei de algo, me senti livre. O processo pós cura é a liberdade, como ela me atravessa, o que ela é pra mim, a emancipação das minhas ideias… Tem uma frase do Nietzsche que ele fala que “nunca é alto o preço a se pagar pelo privilégio de se pertencer a si mesmo”. Aí li isso e me tocou muito! Fui para São Paulo pra ser livre, estar sem amarras, já que não era meu reduto e foi minha pesquisa pro disco.

O disco Liberdade é diferente dos anteriores e vem na fronteira do que é o hip hop, o jazz, pra brincar com essa fusão. É um processo que expande todas as possibilidades de liberdade, quase como um ciclo mesmo com o Cura. Peguei o disco anterior e sampleei, porque tem uma discussão no mercado se um sample é válido ou não, aí eu pensei em me samplear eu mesmo!

Pensando no Liberdade, chamei vários beatmakers, e aí é mais liberdade ainda, mesmo eu sendo apegado no que faço. Me permiti a trazer outras pessoas a pensarem além de mim. Foi um open bar de sample! Peguei umas coisas, outra galera pegou outra e, em cima da provocação que eles me fizeram no sample, coloquei outros instrumentos. Pra ir além, eu chamei uma galera do rap e de outros ritmos pra brincar em cima também. O jazz tá bem na cara, mas tem participação de gente muito legal: Zudizilla, Tuyo, Tássia Reis, Coruja, Taí Guajajara… Tem uma pá de gente.

O disco é pensar no processo de Liberdade, e pra o disco nascer, tenho que viver na extremidade e tô na expansão total desse processo de ser livre. O jazz se mostra sempre livre e, se é isso, vamo pra cima desse processo! Essa é a onda que tô agora.