No New Enemies – VISTA 23

Publicado em 26/05/2022

Por Ana Ferraz

Em 2003, o então presidente americano George Bush, antes de iniciar a “guerra ao terror” no Iraque, anunciou que o inimigo (referindo-se aos terroristas) é invisível e está em todos os lugares. Uma sentença paranóica e totalitária, que vai contra qualquer ideia de comunidade.

Rejeitando essa cultura do medo e focado na crescente economia baseada na amizade, como acontece nas tecnologias peer-to-peer (emule, soulseek, etc), softwares livres, na street art e em outros gestos de solidariedade, um coletivo internacional de artistas, escritores, pensadores e ativistas foi criado. Essencialmente ligado à arte urbana, o grupo assina como No New Enemies (algo como “sem novos inimigos”), nome que gera a reflexão sobre as diferenças, as similaridades e os medos coletivos. Sobre como pessoas com interesses e identidades variadas podem trabalhar em conjunto, buscando um objetivo em comum.


“Ao longo dos anos tive o prazer de conhecer várias pessoas que, por diversas razões, arrumavam tempo para colocarem seus trabalhos no espaço público. Ao encontrar essas pessoas, eu fiz amigos, aprendi coisas e encontrei uma comunidade que pensava de forma parecida, pessoas com bons corações, que abriam suas portas; uma comunidade sem passaportes ou língua nativa em comum, mas com o mesmo conhecimento, as mesmas referências e a mesma repulsa pelo sistema e pela brutalidade”, conta Harlan Levey, fundador do NNE. “Arte sempre foi uma questão pessoal. Minha primeira paixão por street art foi ao encontrar frases pintadas do poeta de rua oficial do Harlen, James Delavega. Foi minha primeira noite em claro, depois de uma longa conversa com Chaz, que naquela época ainda não havia criado o The London Police. Essa conversa foi só poesia, aventura e troca na indefinição da juventude. Não foram definições, nem ataques com termos específicos. Assuma riscos. Aja. Seja positivo. Ame. Curta. Foi simples assim. Isso porém, não significa que foi ingênuo, fácil ou óbvio”, acrescenta Harlan, que é também o editor chefe da revista europeia de skate e arte, Modart.

A ideia da criação de um coletivo oficial se concretizou em 2004, após Harlan terminar um documentário sobre a prática da democracia nos Estados Unidos, encomendado pela rede de TV Al Arabiya. O resultado obtido após seis semanas e 60 entrevistas em Washington D.C., Boston e Nova York, o deixou literalmente deprimido e com uma sensação de descrédito. “O que fazer? Protestar? Votar? Escrever ao governo local? Reciclar? Colocar um adesivo de bandeira no seu carro? (…)”. Para Harlan, o No New Enemies nasceu como uma resposta a esse momento pessoal e uma resposta à cultura do medo em geral, quase como um remédio para não vomitar enquanto assistia ao Bush dizer que o inimigo vive na porta ao lado.

Como explica Harlan, às vezes as ações do NNE são gigantes e incluem exposição, live painting, shows de música e bebida de graça, mas às vezes são simplesmente duas pessoas na rua, de noite, pintando um muro. Os artistas Logan Hicks, Lucy Mclauchlan, Victor Castillo, Ephameron, Nico Stumpo, The Boghe, San, Btoy, SatOne, YO! What happened to peace, Will Barras e Mr. Jago já fizeram exposições ligadas ao No New Enemies, e nomes bem conhecidos da street art mundial, a exemplo de The London Police, Dave the Chimp, Friends With You, Jon Burgerman, L’Atlas,  Neasden Control Centre, Jeremy Fish, Above, Influenza e Boris Hoppek, já apareceram ligados de alguma forma ao grupo. O coletivo fez também feiras com artistas locais onde 100% das vendas iam para os artistas, eventos ligados ao skate e participou da maior feira de arte do mundo, a Miami Art Basel.



Provavelmente o evento mais legal que o NNE já realizou aconteceu em 2008, no Botanique Museum, em Bruxelas, na Bélgica. A mega exposição rolou paralelamente ao festival anual de música Les Nuits Du Botanique. Com bandas como Audiobullys tocando ao lado, o evento recebeu mais de dez mil visitantes e contou com trabalhos de quase todo o coletivo. Também havia parte do acervo do Don, proprietário da “The Don Gallery” na Itália, dono de diversas obras de artistas ligados à arte urbana e membro honorário do NNE.

Esses eventos geralmente recebem apoio financeiro de grandes marcas, como Levi’s e Nike. Portanto perguntei à Harlan se não era uma atitude contraditória usar o dinheiro dessas corporações e ao mesmo tempo ter um discurso ativista sobre consumir menos e ser mais consciente. Recebi como resposta uma frase bem subjetiva (ou subversiva?): “Estratégia 10 passos para trás, 5 passos para frente; os dois lados ganham; ande na linha; se comprometa quando pode e seja militante quando não pode.”. Injetar dinheiro num coletivo que tem como missão esse pensamento crítico, é, indiscutivelmente, uma situação curiosa para uma empresa, que, na busca pela última tendência no mercado não percebe as sutilezas e as subversões dos movimentos culturais que elas apoiam. Quanto à estética da street art ter se tornado moda, Harlan chama a atenção para outras raízes: “Mesmo que influenciada pela estética e pela atitude do Grafitti tradicional, a street art tem uma raiz bem mais densa, incluindo uma história de ativismo político, que você vai, por exemplo, encontrar na campanha de pôsteres do L’Atelier Populaire (Paris, 1968, e depois remixados pelo Banksy)”. De qualquer forma, como Harlan explica, o No New Enemies foi concebido como uma organização sem fins lucrativos e conta mais com a ajuda e a energia de voluntários do que de grandes empresas. 

Com essa proposta de colocar arte e questionamento no espaço público, o NNE quer que os artistas sejam reconhecidos como programadores do futuro, assim como acontece com cientistas e políticos. Por trás do conceito está também uma maneira de ajudar novos talentos com um fundo de auxílio e inspirar jovens artistas e escritores, produzindo publicações de alto nível em meios digitais e impressos. Para isso, no início de 2009 foi criado um programa de residência do coletivo, no qual um artista passa duas semanas na Bélgica, com todo suporte financeiro, criando para uma exposição individual que acontece no final da residência, na Galeria Mr. Ego, em Bruxelas. Colocado em prática agora, nas duas últimas semanas de março, o primeiro artista a participar desse programa de residência é o RIPO. Aproveitando esse momento, conversei com ele sobre sua arte e sobre o NNE, numa entrevista que você confere a seguir.

 

Botanique Museum – Gerome Demuth / Guillaume Desmerets

Por que Ripo?
Isso vêm de repo, que é uma expressão curta para “reposse” (repossess em Inglês, de tomar posse novamente). É sobre a ideia de ripossessar a vida e a arte. Tomando-as de volta através do faça-você-mesmo. Ser criativo e criar é algo que todos nós podemos fazer e quando fazemos algo, ficamos orgulhosos pois começamos a nos sentir independentes, o que nos leva a formar nossas próprias opiniões sobre as coisas e a acreditar nos nossos próprios julgamentos. Dessa forma podemos viver a vida da maneira que queremos, ou em alguns casos, podemos fazer nossa rua ficar da maneira que queremos. Droga, estou parecendo um hippie agora?

Ripo, Barcelona

Conte-me sobre a sua arte.
Estou ligado à arte desde que tinha sete anos, eu acho. Tenho certeza que foi antes, mas nesse momento foi quando eu comecei a levar isso a sério, e você sabe, quando se tem sete anos tudo é muito sério. Começou como uma obsessão por ler e desenhar quadrinhos, quadrinhos de super heróis, que, aos 13 ou 14 anos, aumentou para uma obsessão por graffiti também, mas isso ao mesmo tempo em que eu tinha aulas de arte na escola. Eventualmente, fui parar numa faculdade de artes nos Estados Unidos e estudei aquela baboseira por quatro anos, até que, finalmente, me mudei para Barcelona e comecei realmente a focar na arte que eu estava fazendo e na que queria fazer. Agora a minha arte tem todas essas influências, quadrinhos, graffiti, talvez também um pouco da coisa acadêmica que permaneceu em mim, e toda a estética das cidades que morei e visitei. A maioria dos meus trabalhos está na rua, já que é onde eu acho que eles podem ter uma vida mais completa, e espero aumentar isso, achar novas maneiras de trabalhar, novos materiais, novos estilos, novos lugares, continuar aprendendo e o mais importante, me divertir com isso.


Ripo, Buenos Aires

Quais suas influências na arte?
Acho que as mais óbvias, pelo menos nas minhas letras, são antigas placas e sinais pintados à mão ou por outras técnicas que as pessoas usavam para ilustrar as palavras. Meus estilos vêm de todas as formas caligráficas e fontes que me chamam a atenção e que aparecem na minha vida diária. Nunca estudei formalmente tipografia ou caligrafia, e somente participei dum curso rápido de design gráfico quando eu tinha 18 anos. A maioria das minhas letras e os trabalhos caligráficos vêm de observação, adaptação, e recriação de algo à minha maneira e opiniões estéticas, tornando-as novas por causa desse novo olhar. Eu amo caligrafia asiática, arábica, o estilo antigo Inglês, sinais pintados à mão do século 20, graffiti e muitos artistas, tanto das ruas como fora delas, pessoas que vêm fazendo trabalhos impressionantes, visualmente e conceitualmente, com a linguagem escrita e a tipografia.

Conte-me sobre as exposições e eventos que você já participou. Você tem um enfoque diferente no seu trabalho de galeria?
Já mandei trabalhos para um monte de exposições ao redor do mundo, mas nunca foquei num trabalho em espaço fechado. Um dos eventos mais fodas que eu fui sortudo o suficiente para participar foi o 11 Spring St. Show, que o Wooster Collective organizou no final de 2006. Havia pessoas que esperaram 5 horas na fila para entrarem no prédio. Eu nunca tinha visto, muito menos participado, de um evento tão significante assim. Agora em Março/Abril eu farei minha primeira exposição individual em Bruxelas, na Bélgica, chamada “… is what I meant to say” (…é o que eu quis dizer), como parte do novo programa de residência do No New Enemies. Vai ser uma exposição basicamente de desenhos preto e branco. A ideia é mostrar os processos por trás dos meus murais e de outros trabalhos na rua que eu não posso mostrar em galerias e experimentos gerais que aparecem nos meus desenhos. Quero preencher o espaço com isso e sobrelotar os visitantes com um pouco dessas palavras e expressões, mais ou menos como sou sobrelotado ao andar na rua, tentando pegar toda a merda visual que me cerca.

Eu vi que você já esteve em diversos países pintando. Quais países? Qual é o seu preferido e por que?
Eu visitei e exibi minha arte (a maioria ilegal) em mais ou menos 36 países pela Europa, América do Norte, América Central e América do Sul. A maioria dos melhores lugares teve a ver com encontrar as pessoas certas, mas Nova York, Barcelona, Buenos Aires, São Paulo, Cidade do México, Bucareste, Istambul, Atenas e Milão, todos, tem coisas que realmente me interessam. O graffiti e a arte de rua nessas cidades são fora de controle e, em cada cidade, únicos.

Conte-me sobre seu projeto “Reflect On”.
O projeto Reflect On tem a ver com usar espelhos como plataforma para as minhas pinturas, o que adiciona um outro nível de comunicação e significado a elas. Quando você se olha num espelho que está pintado, qualquer imagem ou mensagem que está ali primeiramente fala direto com você, mas também simplesmente visualizar seu rosto (ou qualquer outra coisa que aparece na reflexão) se torna parte da pintura. Então, com relação às mensagens, ao ver um espelho com as palavras “4 sale” ou “A la venta” (à venda) faz você começar a pensar no que está a venda. Você? O carro que aparece? O prédio? O que isso está fazendo aqui e o que isso realmente quer dizer? Esse nível de abertura, movimento e mudança constante que acontece dentro de espelhos adiciona mais perguntas do que respostas a eles. Mesmo que, às vezes, eu os exiba em galerias e os venda, eles funcionam muito melhor nas ruas, porque eles usam e precisam de movimentação ao redor para terem significado.

O que você faz ou já fez em conjunto com o No New Enemies?
O NNE é tipo um grupo meio solto de amigos e estranhos que fazem coisas legais e conhecem o Harlan. Nós somos como uma comunidade de artistas que, quando as coisas acontecem, pode contar aos outros sobre projetos, trabalhar juntos nas coisas, tentar nos ajudar mutuamente e nos beneficiar do que estamos fazendo. Nós pintamos juntos, fazemos exposições juntos, tudo muito amarrado ao Harlan. Fui preso uma vez com o ROA, que eu havia conhecido somente uma hora antes através do NNE.

Ripo, Assunción

Você é envolvido com skate? De que forma e quanto?
Eu andei de skate por volta de 9 ou 10 anos. Foi a minha vida por anos, mas não tive muito tempo e energia para isso ultimamente. Eu recém tinha comprado meu primeiro skate em anos no verão passado. Era um shape Shut, rodas Earthwing, trucks Indy, tudo novo e tudo maravilhoso. Daí  fui roubado um mês depois e não arrumei outro skate desde então. Mas espero ter um novo em breve.

Algo mais?
Espero que meu trabalho inspire outras pessoas a criarem algo. Arte na rua é para todos e ver outros fazendo isso inspira e faz você perceber que qualquer um pode fazer. Basta ter uma ideia, alguns materiais baratos e um lugar para tentar e você está no caminho. É por isso que as ruas sempre foram o melhor suporte e inspiração para mim.

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